SOUSA MENDES

António Salazar e Aristides Souza Mendes

O QUE ERA PARA SER UMA HOMENAGEM…

Ao terminar os trabalhos no terceiro dia do I Congresso Internacional da Memória Sefardita, as pessoas presentes, com maior informação e sensibilidade histórica, perceberam que Portugal continuará em débito com a História. Isso porque o esperado momento de resgate da memória de um grande homem acabou de forma frustrante e constrangedora.

O dia deveria ser marcado pelas homenagens ao homem que arriscou o conforto e o futuro da sua própria família para salvar famílias judias.
Desobedecendo a ordens do Governo anti-semita de Antonio Salazar, o Cônsul em Bordeaux, Aristides Sousa Mendes, concedeu visto de entrada em Portugal a milhares de judeus fugitivos do nazismo. Por sua atitude, Sousa Mendes foi destituído do cargo, afastado sem vencimentos e jogado ao ostracismo. Morreu pobre e desonrado no leito de um hospital público da cidade de Lisboa.

Quem conhece a história de Aristides Sousa Mendes e acreditou na proposta do título do congresso, Memória Sefardita, saiu no mínimo frustrado do auditório do Teatro Municipal da Guarda. Memorial houve, é bem verdade, mas acanhado, restrito e limitado a menos de um quarto de hora de exposição para cada palestrante.

Como reduzir a vida de um gigante da história há exíguos 12 minutos? É o que se perguntava cada um dos palestrantes que se esforçaram para espremer em três ou quatro páginas as décadas de história de um homem ímpar.

Mais constrangedor ainda foi ver o Dr. António de Sousa Mendes, neto do homenageado, segurando um maço de cartas, cartões postais e bilhetes do avô, tesouros que gostaria de compartilhar com a platéia, mas que os fatídicos 12 minutos reduziram a uma exposição que chegou em certo ponto a parecer desconexa.

Condescendente, o público entendeu. No afã de escolher o que havia de melhor – e diante da surpresa de ter que reduzir sua exposição – percebia-se que não foi fácil para ele reorganizar as idéias pré-estabelecidas.

O tema do terceiro painel deste I Congresso Internacional da Memória Sefardita era “A fronteira da vida de Aristides de Sousa Mendes”. E foi justamente isso que aconteceu: Ficamos apenas na fronteira.

Como boa parte dos presentes conhecia bem a história do Cônsul de Bordeaux, estes tiveram compreensão do que cada expositor ali relatou. Mas a organização do Festival provou que Portugal ainda carece de reconhecer o grande, enorme filho que um dia teve.

António Sousa Mendes faz ginástica para falar do avô em 12 minutos

Pressionado pela organização a limitar em 12 minutos cada exposição, coube a Jorge Martins, pesquisador do Instituto Universitário de Lisboa, cuidar do cronômetro.

Antonieta Garcia, professora na Universidade da beira Interior, faz uso dos seus 12 minutos.

Jornalista Miriam Assor fala sobre Aristides de Sousa Mendes... Em 12 minutos

ARISTIDES POR ELE MESMO

Conheça agora um pouco da história de Aristides de Sousa Mendes narrado na primeira pessoa.

Sem mais nem menos, suspende-me de funções. As conseqüências são a inatividade e a redução brutal de vencimentos. Com a família cada vez maior, é o limiar da miséria, é o desespero.

BREVES MEMÓRIAS DE ARISTIDES SOUSA MENDES

Não consigo dormir, viro-me para a esquerda, viro-me para a direita, ora tenho frio, ora calor, ora me tapo, ora destapo. Vivo em Bordeaux e de Lisboa acabo de receber más notícias, proibições. Que horas são? Tenho sede, Angelina [esposa] dá-me água…

Estou sempre a zanzar de um lado para o outro, na cama e na vida. A diplomacia tem destas coisas, não dá tempo para um homem assentar e deitar raiz. Será por isso que eu torno sempre às mais profundas. Em 1908 tentaram cortá-las, no Terreiro do Paço mataram-me el-Rei D. Carlos, também o príncipe herdeiro. Lesa-majestade, lesa-vida… Dois anos depois o 5 de Outubro, bandeiras republicanas são içadas, já definha a História pátria…

César [Sousa Mendes] é o meu irmão gêmeo. Juntos, íamos tomar banho no rio Dão. Juntos, cursamos Direito na Universidade de Coimbra. Nosso pai é juiz. Mas César e eu optamos pela diplomacia, não pela magistratura ou advocacia. Até nas carreiras somos gêmeos. Tomamos o caminho errado? Creio que sim, somos monárquicos e, com a implantação da República, passamos a ser descriminados. Fui Cônsul na Guiana Francesa, 1 ano; em Zanzibar, África britânica, 7 anos. Ali estou sempre doente, também a minha mulher e os meus filhos. Peço para me transferirem. No Palácio das Necessidades de Lisboa, que é o Ministério dos Negócios Estrangeiros, finalmente atendem o meu pedido e mandam-me para o sul do Brasil, sou nomeado Cônsul em Curitiba.

Estamos em 1919, tenho 34 anos. Só por causa das minhas convicções monárquicas o novo Governo de Sidônio Pais, sem mais nem menos, suspende-me de funções. Conseqüências: inatividade, redução brutal de vencimentos e família cada vez maior. É o limiar da miséria, é o desespero. Na Embaixada portuguesa no Rio de Janeiro, César é o Encarregado de Negócios, felizmente. Movimenta-se, consegue que 34 prestigiados cidadãos portugueses, residentes em Curitiba, subscrevam um protesto contra uma campanha miserável movida contra o Cônsul português por criaturas sem vislumbre de senso moral. A iniciativa de César dá resultado: no final do ano suspendem a suspensão. Mas continuo sob mira, e alvo não quero ser. Tudo se agrava, de Lisboa acabo de receber más notícias, proibições…

Quatro anos mais novo do que eu, em Santa Comba Dão, no nosso distrito de Viseu, nasceu um homem que vai dar muito que falar, estou em crer. Também ele cursou Direito na Universidade de Coimbra, mas depois optou por Economia e Finanças, não pela Diplomacia. Em 1910, em Viseu, no Colégio do Cónego Barreiros, durante a sua conferência sobre Educação da Mocidade, ele disse: “A vontade deve ser educada no amor a D’us e ao próximo, no amor à família, à honra e à dignidade, ao trabalho e à verdade”. Estou de acordo. Este moço pode vir a ser uma barreira contra a falta de escrúpulos que submerge a nação. O seu nome? António de Oliveira Salazar. Um dia será alçado a lugar cimeiro do país, prevejo. Mas quando é que ele vai assumir o poder para nos salvar? Tenho pressa…

Não me deixam ficar em Curitiba, não lhes convém, a colônia portuguesa está bem ciente da perseguição que me fizeram. Mandam-me para Cônsul temporário em S. Francisco da Califórnia. Temporário é equivalente a vencimento reduzido e, em dois anos, nascem mais dois filhos meus. Outra vez o limiar da miséria, o desespero. Depois me mandam novamente para o Brasil. Em Agosto de 24 sou Cônsul em São Luís do Maranhão, no norte. E em Dezembro estou a gerir interinamente o Consulado de Porto Alegre, no extremo sul. Interinamente é eufemismo de “corte nos vencimentos”… Cansam-me estas viagens, estas deslocações sucessivas, mas o pior de tudo é a falta de dinheiro. Além do mais, de Lisboa acabo de receber más notícias, proibições.

Em 1926 estou outra vez em Lisboa, presto serviço na Direção-Geral dos Negócios Comerciais e Consulares. A 28 de Maio ocorre o golpe do General Gomes da Costa, é a Ditadura Militar. Para surpresa minha, em Março de 27 sou nomeado Cônsul em Vigo, na Galiza, cargo de muito prestígio. Um amigo meu, funcionário interno do Palácio das Necessidades, diz-me que fui escolhido, por motivo de confiança, pois o regime militar vê em mim o funcionário próprio para inutilizar os manejos conspiratórios dos emigrados políticos contra a Ditadura. Os militares foram gentis, fizeram-me justiça mas estão equivocados a meu respeito: não sou um denunciante, pedras eu não atiro, nem a primeira, nem a segunda, nem qualquer outra.

Sonhar, às vezes é antecipar. Em 1928 Salazar sobe à ribalta, é ele o novo Ministro das Finanças da Ditadura Militar. Com o auxílio do exército impõe novas contribuições, veta despesas públicas, alcança o equilíbrio do orçamento, liquida a dívida flutuante e estabiliza a moeda. Já ninguém consegue arredá-lo, ou ele ou a bancarrota. Em 1930 acontece o óbvio: Salazar, de Ministro das Finanças galga a Presidente do Conselho de Ministros. Talvez possa agora restaurar a monarquia. Poderia, lá isso poderia… Poderia mas não quer, pois sem estirpe nem coroa, quem está a converter-se em soberano absoluto é o próprio Salazar. Metamorfoses. Ilusão, triste ilusão a minha e agora, de Lisboa, acabo de receber más notícias, proibições…

Não correspondo às expectativas dos militares mas eles continuam a prestigiar-me, não sei porquê. Em 1929 nomeiam-me Cônsul em Antuérpia, na Bélgica. Ali permaneço durante 9 anos. Com apenas 50 anos já sou o decano do corpo diplomático. O rei belga, Leopoldo III, simpatiza muito comigo, por duas vezes me condecora. Mas em 38 sou nomeado Cônsul em Bordeaux, França. Peço para ser mantido em Antuérpia, cidade onde fiz tantos amigos. Salazar, para minha consternação, recusa o pedido e sigo para Bordeaux. De Lisboa acabo de receber más notícias…

De outras vezes o sonho converte-se em pesadelo, ânsias, ao acordar a minha apetência é gritar. Em 39 rebenta a II Guerra Mundial. Os alemães invadem a Polônia e os Países Baixos e a França, Paris é ocupada. Depois a horda ariana começa a descer para sul e sudoeste. Vêm aí os assassinos! Milhares e milhares de refugiados de guerra acampam nos jardins do Consulado e nas ruas vizinhas. Franceses, belgas, holandeses, checos, austríacos e até alemães. Judeus, mas também cristãos. Querem vistos para o meu país, querem vistos para a Vida. Mas de Lisboa acabo de receber más notícias, proibições…
Com a Presidência do Conselho, Salazar acumula agora a pasta de Ministro dos Negócios Estrangeiros e proíbe que se passem vistos a refugiados de guerra, principalmente a israelitas. Outra vez me desilude o moço… Que faço eu? Acato a ordem do Presidente do Conselho? Impassível, vou então ficar à janela a assistir à matança dos inocentes? Não, não e não! Não sou cúmplice da chacina, vou desobedecer a Salazar, vou passar os vistos e salvar os perseguidos. Tenho de salvar estas pessoas, quantas eu puder. Se estou desobedecendo a ordens, prefiro estar com D’us e contra os homens, que com os homens e contra D’us.

Depois de um atentado frustrado contra Salazar, o Bispo de Coimbra manda imprimir santinhos sugerindo uma reza em prol do ditador. Quem rezasse o texto sugerido recebia o Bispo uma Indulgência que garantia 50 dias de pecados perdoados. Enquanto no Vaticano Pio XII se calou diante da morte de milhões de Judeus, o Bispo de Coimbra garantia menos dias no Purgatório para quem rezasse por alguém que não se importara com o infortúnio judaico.

A DEFESA DE ARISTIDES SOUSA MENDES

Quando levas de judeus começaram a entrar em Portugal através da cidade fronteiriça de Vilar Formoso, as notícias rapidamente chegaram a Lisboa. Percebendo que o cônsul desobedecera às suas ordens, Salazar o destitui do cargo.

Segundo o neto, António de Sousa Mendes, a punição administrativa previa suspensão por seis meses e redução em 50% dos vencimentos. Vingativo, Salazar foi além da lei, o que não era difícil para um ditador. Aristides foi destituído definitivamente do cargo e teve todos os salários cortados.

Com doze filhos para alimentar e uma esposa doente, estava condenado à miséria. Sem o cargo e proibido de advogar, estava condenado à desonra. Estas duas deduções foram registradas pelo ex-cônsul num desabafo após o silêncio que se seguiu à reclamação formal junto ao Governo Salazarista: “Não recebo qualquer resposta. Estou, pois definitivamente condenado à miséria e à desonra.”

Leia abaixo a íntegra da reclamação dirigida por Aristides Sousa Mendes às autoridades portuguesas.

RECLAMAÇÃO FORMAL

Em 1945, terminada a guerra, desaparecem os condicionalismos políticos que desaconselhavam a reapreciação do meu processo. Envio carta ao Presidente da Assembléia Nacional. A mim me referindo na 3.ª pessoa, reclamo:

“Tendo-lhe sido enviadas instruções pelo ministro dos Negócios Estrangeiros sobre vistos em passaportes, essas instruções continham na 1ª alínea a proibição absoluta de os dar aos israelitas, sem discriminação de nacionalidade.

“Tratando-se de milhares de pessoas de religião judaica, de todos os países invadidos, já perseguidas na Alemanha e noutros países seus forçados aderentes, entendeu o reclamante que não devia obedecer àquela proibição por a considerar inconstitucional em virtude do art.º 8.º n.º 3 da Constituição, que garante liberdade e inviolabilidade de crenças, não permitindo que ninguém seja perseguido por causa delas, nem obrigado a responder acerca da religião que professa, medida que aliás se lhe tornava necessária para saber a religião dos impetrantes, e assim negar ou conceder o visto.

“Nestes termos, se o reclamante não obedeceu à ordem recebida do Ministério, não fez mais que resistir, nos termos do n.º 18 do art. 8º da Constituição, a uma ordem que infringia manifestamente as garantias individuais, não legalmente suspensas nessa ocasião (art.º 8.º, n.º 19).

“E não se pretenda que a inviolabilidade de crenças não é, segundo a Constituição, um direito para os estrangeiros visados, por não se acharem residindo em Portugal, único caso em que poderiam ter os mesmos direitos que os nacionais (do art.º 7.º) pois não se trata no caso presente de um direito dos estrangeiros, mas de um dever dos funcionários portugueses, que nem em Portugal nem nos seus Consulados, também território português, poderão sem quebra da Constituição interrogar seja quem for sobre a religião professada, para negar qualquer acto da sua competência, o que a admitir-se significaria odiosa perseguição religiosa, mormente quando se impunha o direito de asilo que todo o país civilizado sempre tem reconhecido e praticado em ocasiões de guerra ou calamidade pública.

CONCLUO:

“Não alegou na resposta que deu no mesmo processo disciplinar estas circunstâncias, pelo motivo de, lavrando a guerra na Europa, não querer dar publicidade e relevo a uma atitude, por parte de funcionários do Estado, que sobre ser inconstitucional poderia ser interpretada como colaboração na obra de perseguição do governo hitleriano contra os judeus, o que representaria uma quebra da neutralidade adoptada pelo governo.

“Não pode porém suportar a evidente injustiça com que foi tratado e conduziu ao absurdo, a que pede seja posto rápido termo, de o reclamante ter sido severamente punido por factos pelos quais a Administração tem sido elogiada, em Portugal e no estrangeiro, manifestamente por engano, pois os encómios cabem ao país e à sua população cujos sentimentos altruístas e humanitários tiveram larga aplicação e retumbância universal, justamente devido à desobediência do reclamante. Em resumo, a atitude do Governo Português foi inconstitucional, antineutral e contrária aos sentimentos de humanidade e, portanto, insofismavelmente „contra a Nação.

Pede deferimento (a) Aristides de Sousa Mendes”

Tenho de salvar estas pessoas, quantas eu puder. Se estou desobedecendo ordens, prefiro estar com D’us e contra os homens, que com os homens contra D’us.

TESTEMUNHOS DE JUDEUS SALVOS POR ARISTIDES DE SOUSA MENDES

DEPOIMENTO DE SCHMIL GOLDBERG

Meu nome é Schmil Goldberg. Mas, se quiserem, podem tratar-me por Samuel. Sou judeu e americano. Em 1941 estou em Portugal para dar assistência a refugiados de guerra, trabalho voluntário. Na Cozinha organizada pela Comunidade Israelita de Lisboa tenho a oportunidade de conhecer o Dr. Aristides de Sousa Mendes. Foi ele o diplomata, o Cônsul que, na França, passou milhares e milhares de vistos a judeus fugidos do nazismo. Uns já partiram para a América, outros ainda estão em Portugal.

Também prestamos auxílio ao Dr. Sousa Mendes, pois ele e a família estão muito carentes. Foi demitido, não recebe qualquer pensão do Governo e, apesar de licenciado em Direito, está proibido de exercer a advocacia e os seus filhos foram impedidos de freqüentar a Universidade. O seu irmão, que era embaixador, também foi demitido. Vê-se que Salazar jamais perdoará o gesto humanitário do Dr. Sousa Mendes.

Num povoado do Distrito de Viseu, o ex-Cônsul possui um palácio onde chegou a albergar muitas famílias de refugiados, às quais, na França, passara vistos para entrada em Portugal. Mas, para atender às necessidades da sua numerosa família, foi obrigado a hipotecar todo o recheio. O Dr. Sousa Mendes já não dispõe de meios financeiros para sobreviver, está condenado à miséria.

Temos o dever de auxiliá-lo e auxiliamos. Até lhe proporcionamos condições para que alguns dos seus filhos emigrem para os Estados Unidos e Canadá. Os que lá se estabelecerem mandarão cartas de chamada para os outros, estou certo disso.

DEPOIMENTO DO RABINO KRUGER

Na Polônia já estou acostumado ao anti-semitismo e não me espanta que, no outro lado, na Alemanha, Hitler tome o poder. Pelas ruas de Berlim judeus são perseguidos, espancados e mortos – é o que nos escrevem, é o que nos dizem, é o que lemos, oi gewalt. O meu nome é Chaim Kruger e sou rabino num klein shtatle, [pequeno povoado]. A guerra é inevitável, prevejo, e em breve os nazis estarão aqui. Não é fácil mas, com economias feitas penosamente, com a minha mulher e as nossas seis crianças, em 1938 conseguimos escapar de Varsóvia para Bruxelas.

Em 1939 os alemães invadem a Polônia e, logo a seguir, os Países Baixos. Com a minha família, outra vez estamos em fuga. Chegamos a Paris, mas logo fugimos para sudoeste porque os alemães já estão invadindo a França. Milhares, dezenas de milhares de refugiados, judeus e outras minorias, pejam os caminhos; são antinazis franceses, belgas e holandeses, checos e alemães, também algumas famílias ciganas. Uma, ou duas vezes por dia, caças alemães mergulham em vôo razante sobre as estradas e metralham os caminhantes. Há dezenas de mortos nas bermas [acostamentos], todos eles ensangüentados. Ainda ouço os gritos, choros, lamentações, oi wais mir. Quis D’us que eu, e os meus, tenhamos escapado sempre ilesos, graças a D’us, dank main G-ot. Para fugir à hecatombe, agora a nossa esperança é chegar à fronteira, atravessar a Espanha, entrar em Portugal e dali embarcar para América, onde nossos parentes nos esperam.

Chegamos a Bordéus em Maio de 1940 e a cidade está repleta de fugitivos. Procuro o Consulado espanhol para obter o visto no passaporte da minha família, mas um funcionário diz-me que sem antes obter o visto português não conseguirei o espanhol. Saio meio atordoado com a informação; não entendo o que se passa. Cá fora um francês, também ele refugiado e, ao que suponho, comunista, explica-me:

– Rabino, Franco foi ajudado pelos nazis durante a guerra civil espanhola. É por isso que não quer no seu território fugitivos do nazismo. Só os deixa passar se forem rumo a Portugal. Salazar, o primeiro ministro português, está entalado. Portugal tem uma aliança antiqüíssima com a Inglaterra e um pacto recente com a Espanha. Se hoje pender para os Aliados, será invadido pelos alemães através de Espanha. Se pender para os alemães, a Inglaterra desembarcará tropas em Portugal. É claro que a simpatia do fascista Salazar vai para Hitler. Mas tem que fingir uma estrita neutralidade para evitar a intervenção quer do Eixo, quer dos Aliados. Por isso acredito que Salazar lava as mãos e vai impedir a entrada de refugiados em Portugal. Aliás, o Dr. Mendes já me disse que tem enviado centenas de telegramas para Lisboa, pedindo autorização para dar vistos e até agora não obteve qualquer resposta.

– Quem é o Dr. Mendes?

– É o Cônsul de Portugal em Bordeaux, Dr. Aristides de Sousa Mendes.

Mendes, Mendes… O nome bate-me nos ouvidos, reconheço-o, é marrano, é judeu. Tenho que falar com o Dr. Mendes.

Dirijo-me ao Consulado de Portugal. O jardim e as ruas vizinhas estão repletas de refugiados, todos a aguardar vistos para seguirem viagem, são milhares em desespero. Identifico-me, peço para falar com o Dr. Mendes. Três horas depois sou recebido. É um cavalheiro muito distinto, porém com feições angustiadas. Deve estar a viver uma grande tragédia, bem posso imaginar qual seja ela. Apresento-lhe a minha mulher e os meus filhos, conto-lhe do nosso êxodo de Varsóvia até Bordeaux. Entende o meu sofrimento porque também ele tem muitos filhos, acho que doze.

Convida-nos a pousar em sua casa para darmos algum descanso às crianças. Aceito, agradeço e pergunto-lhe se também ele é judeu. Sorrindo, esclarece:

– Rabino, não se iluda com o meu sobrenome Mendes. Em Portugal a religião do estado é quem nos guia, outra não podemos seguir ou mencionar. Se, por acaso, tivemos um ancestral judeu, não é nada que nos desmereça, mas disso não podemos demonstrar conhecimento.

Errei o alvo. Não sei como continuar a conversa. Engasgo-me. Depois ouso perguntar-lhe quando podemos contar com os vistos para seguir viagem para Portugal. Acabrunhado, diz-me que nada pode garantir, ainda não tem a necessária autorização do seu Governo.

– Então, Dr. Mendes, vamos ficar aqui em Bordeaux à espera da matança?

Levanta-se. Amargurado, segura-me o braço.

– Rabino, tenha fé, nem tudo está perdido, confie na Divina Providência.

Conduz-nos a sua casa, que fica no Quai Louis XVIII, por trás do Consulado. Apresenta-nos à sua esposa, D. Angelina, e a três dos seus filhos mais velhos. Indica os aposentos que nos destina. Deseja-nos um bom descanso.

É um espanto, este Dr. Mendes. Na manhã do dia 17 de Junho de 1940 avisa-me:

– Rabino, sossegue, vou passar vistos a toda gente.

Nos dias 17, 18 e 19, ele e dois dos seus filhos mais velhos trabalham sem parar, nem sequer para almoçar ou jantar, a exaustão. Passam milhares e milhares de vistos, os refugiados já organizados em filas. Os passaportes são coletivos, familiares. No meu constam oito nomes, o meu, o da minha mulher e os dos meus filhos. Assim acontecendo com quase todos, calculo que o Dr. Mendes, nesses três dias, tenha passado uns 30 mil vistos, dos quais 10 mil a judeus, pelo menos.

Não se dá por contente. Obedecendo às instruções que recebera de Lisboa, o Cônsul de Portugal em Bayonne recusa-se a passar vistos aos refugiados de guerra. Porém o Dr. Mendes é seu superior. Desloca-se a Bayonne, que fica junto da fronteira franco-espanhola, e é ele mesmo quem, mais uma vez, passa milhares de vistos. O mesmo acontece com o Consulado de Portugal em Hendaye. Também aí o Dr. Mendes passa milhares de vistos. No dia 24 de Junho o Dr. Mendes mostra-me e traduz-me um telegrama que acabara de receber.

É chamado imediatamente a Lisboa e acusado por Salazar, o Primeiro Ministro português, de “concessão abusiva de vistos em passaportes de estrangeiros”. Depois de 32 anos de serviço, o Dr. Mendes vai ser demitido sem receber qualquer reforma ou indenização, e tem 12 filhos para criar. Já teve 14, mas morreram 2, o segundo e o último, se não me engano. Cuidar de 12 filhos é obra! Eu que o diga, que só tenho 6 e bem sei como custa criá-los. Compadeço-me, voz embargada, ihre mazle, [má sorte a sua]. Mas é ele quem atalha, quem me anima:

– Rabino, se tantos judeus sofrem por causa de um demônio não-judeu, também eu posso sofrer com o sofrimento de tantos judeus…

A grosse Hensche, [um grande Homem], este Dr. Mendes!

DEPOIMENTO DE UM FAMILIAR

Lisboa, 3 de Abril de 1954. Estou no Hospital da Ordem Terceira, na Rua Serpa Pinto. Abro a mala, retiro o lenço, enxugo os olhos. O meu tio, Dr. Aristides de Sousa Mendes, acaba de falecer, trombose cerebral agravada por pneumonia. Sua esposa, minha tia Angelina, morreu em 1948 com uma hemorragia cerebral e ficou vários meses em coma, coitada.

Todos os seus filhos, meus primos, vivem hoje nos Estados Unidos e no Canadá, conseguiram escapar a tempo deste purgatório… Sou eu a única familiar presente. O meu tio era um homem bom, sempre a pensar no bem dos outros. É por isso que morre pobre e desonrado.

HOMENAGEM PÓSTUMA

Em 1967, em Nova Iorque, o Yad Vashem, organização judaica para a recordação dos mártires e heróis do Holocausto em Israel, homenageia Aristides de Sousa Mendes com a sua mais alta distinção: uma medalha comemorativa com a inscrição do Talmud: “Quem salva uma vida humana é como se salvasse um mundo inteiro”. Salazar impede que a imprensa portuguesa noticie o acontecimento.

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8 comentários sobre “SOUSA MENDES

  1. Sou a coordenadora do Museu Virtual Aristides Sousa Mendes. Estamos a preparar uma 2ª fase com a actualização de conteúdos, da plataforma informática e com a tradução para o Inglês do site.

    Gostamos muito do conteúdo deste blogue. Gostaríamos de saber a sua opinião sobre o MVASM, sugestões e eventualmente saber se há conteúdos que conheça que importe adicionar.

    Cumprimentos

    Luisa Pacheco Marques

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  2. Cara esse lance do Pio XII já tá provado que foi fraude. Acho que até o cara que escreveu o livro já confessou. Mas tem um monte de livros que comprovam a ajuda do Papa e de católicos a judeus, para fugirem do horror nazista.
    Respeitosamente de um leitor do blog e admirador da cultura judaica e da Nação de Israel

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    • Jader, você diz: “Acho que até o cara que escreveu o livro já confessou”. Desculpe a franqueza, mas “achar” sem informar a fonte é meio complicado. John Cornwell é um dos maiores historiadores católicos contemporâneos e seu livro é repleto de provas irrefutáveis. Os livros que supostamente “comprovam” a ajuda de Pio XII é que são completamente repletos de “achismos”. Se você ainda não leu o livro de Cornwell, faça-o. Além de ser uma bela obra literária, O Papa de Hitler é uma lição de como escrever História.

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      • Obrigada, Carlos. Infelizmente estamos envolvidos em tantas atividades que temos protelado algumas ações. E uma delas é disponibilizar o conteúdo em Inglês das nossas matérias. Somos gratos por sua disposição em nos ajudar em relação à solicitação da Olivia. E se puderes nos enviar sua tradução, nós publicaremos aqui no blog. Outra coisa: Estivemos em Cabanas de Viriato e estamos planeando unirmo-nos a vocês na campanha pela restauração da casa dos seus antepassados. Escrevo para um site israelense, que tem uma boa penetração entre amigos de Israel e da história daqueles que ajudaram judeus, e juntamente com eles talvez possamos envolver mais pessoas neste desafio mais do que justo: A restauração da Casa de Sousa Mendes.

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  3. Tenho esses dois belos sobrenomes em minha familia. Gostaria de saber se tenho a possibilidade de conhecer a genealogia dele. Sou admirador do povo de Israel e da sua história de vitorias.

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